sábado, 2 de outubro de 2010

Sobre a grave crise do Estado Português (01.10.2010)

No Público de ontem há vários artigos que merecem uma leitura atenta. Deixo aqui alguns excertos que subscrevo inteiramente:


"(...)Ao longo dos últimos cinco anos Sócrates pôde aprovar como quis os seus orçamentos do Estado, primeiro com maioria absoluta, depois graças à abstenção de um PSD com a direcção (de Ferreira Leite) de saída. Ninguém lhe impôs condições, fez o que quis. Por isso é sua, é do seu ministro das Finanças e é do PS a responsabilidade por estarmos no estado em que estamos. Primeiro, pelo que não fizeram de reestruturação e redução da máquina do Estado, pois deixaram o PRACE a meio e regressaram mesmo ao alegre festim da multiplicação de institutos e empresas públicas. Depois, pela insistente recusa em enfrentarem as debilidades nacionais, pela estratégia errada de promoção do desenvolvimento económico com base no compadrio e nas redes de "amigos", pela criação de ilusões estatísticas e por uma estratégia política autoritária que começou sempre por hostilizar, de forma por vezes irracional, os grupos de interesse, e acabou por regra em recuos em toda a linha. Por fim por uma gestão criminosa do calendário eleitoral que se traduziu em medidas populistas que afundaram o país, desde o aumento de 2,9 por cento aos funcionários públicos à multiplicação de prestações sociais insustentáveis e impossíveis de fiscalizar, passando por programas de investimento sumptuários e pelo total laxismo no controlo orçamental.

De facto, como ontem notou o economista Álvaro Marvão Pereira, o conjunto de medidas anunciado quarta-feira "deve-se exclusiva e totalmente à inacreditável irresponsabilidade e à incompetência atroz deste primeiro-ministro e deste ministro das Finanças" que, por razões eleitorais, fizeram exactamente o contrário do que se fez nos restantes países europeus: adiaram os cortes na despesa e fizeram "tudo para encobrir a verdadeira situação das contas públicas portuguesas". Este economista fez, de resto, questão de não isentar Teixeira dos Santos de responsabilidades. Afinal foi ele que reviu três vezes o défice de 2009, como é ele que já vai no terceiro pacote de medidas para 2010. É ele que tem desorçamentado, é ele que tem inventado contabilidade criativa, é ele que agora recorre ao fundo de pensões da PT (para pagar os submarinos, disse, como se quando fez o Orçamento não tivesse a obrigação de saber que ia ter de pagar os submarinos!) e é ele que ainda esta semana foi desautorizado pelas empresas públicas que não cumprem o tecto do endividamento. Como é ele que anuncia a suspensão dos investimentos até ao fim do ano, mas não a suspensão do TGV também em 2011.(...)

E é assim, porque este Governo nunca seria capaz de evitar a tentação de subir os impostos (impostos mais altos criam receitas a que o Estado se habitua, mesmo quando a aflição passa...), porque é incapaz de pensar em modelos alternativos de organização da máquina administrativa e de Estado social. É por isso que é uma falácia afirmar que não há alternativa à subida do IVA, por exemplo. Marvão Pereira, no texto que já citámos, mostra que existe: cortando apenas 10 por cento na aquisição de bens e serviços do Estado e nas despesas de 50 institutos não relacionados com a saúde e com a educação obter-se-iam mais do que os 900 milhões de receitas extra que trará o aumento do IVA."


"(...)O mal, evidentemente, não está em rapar o fundo ao tacho, um exercício agora necessário. O mal está em que nas contorções financeiras do Governo não se consegue perceber vestígio de um pensamento político ou de uma vontade de reforma. Perante a ameaça externa, Sócrates lá se resolveu a limitar um pouco o regabofe estabelecido. Mas não trouxe uma ideia original ou aproveitável sobre o desenvolvimento da economia, os limites do Estado providência, a administração central ou a administração local. Este "PEC III" trata os sintomas de uma doença que não se deu ao trabalho, ou simplesmente não foi capaz, de identificar.(...)

Entretanto, o país chegou ao caos. Existem 700.000 funcionários, que (fora a saúde e o ensino) ainda ninguém descobriu ao certo em que se ocupam; os srs. ministros têm quatro secretárias e quatro motoristas: e no meio do delírio vigente o Governo declara como objectivo nacional "reduzir as despesas com a frota automóvel do Estado" em 20 por cento. Se estas coisas acontecem, e acontecem, na farsa de mau gosto em que Portugal se tornou, não se deve esperar qualquer espécie de regeneração ou de alívio. A inutilidade do sacrifício que Sócrates nos pediu é manifesta. "


"(...)Vale a pena fazer o filme da crise financeira e orçamental. No início de 2008 o Governo entrou em campanha eleitoral: despediu Correia de Campos, desceu o IVA para 20%, pôs na gaveta umas quantas reformas. Com a crise internacional a agudizar-se em finais de 2008 e com as eleições à porta, foi o descontrolo absoluto das contas públicas. Mas ganha as eleições, embora com maioria relativa. Chegamos a Janeiro passado com um défice incompreensível de 9,3% do Produto para 2009. Porque poderíamos vir a ter eleições antecipadas, o Governo cede aos interesses mais variados, volta atrás com muita coisa, nomeadamente na Educação. O orçamento para 2010 é pouco ambicioso e os mercados penalizam o país. O PEC, que se viria a revelar ser apenas o primeiro, é apenas pouco melhor que o orçamento. Os mercados voltam a penalizar o país e o Governo entra na clandestinidade, ninguém está lá para defender o rigor nas contas públicas.

As agências especializadas, em Abril, baixam drasticamente o rating da República e os investidores desfazem-se da dívida pública nacional com perdas (ou seja, os juros a longo prazo batem recordes). O Governo sabe (espero) que vai demorar anos a reverter a situação e com custos brutais para a população. O silêncio do Governo é total.

No entanto, nesse período de silêncio e de óbvio descalabro, não deixa de assinar contratos para mais uma auto-estrada que custará quase um por cento do PIB, nem se esquecerá de assinar o contrato do TGV Poceirão-Caia. Infelizmente tudo isto depois da quebra dramática no rating, o que acentua o sentimento de que o Governo está "em estado de negação" (a expressão não é minha).

No dia seguinte ao contrato do TGV, é anunciado mais um pacote (o chamado indevidamente PEC-2) pela mão da sr.ª Merkel, mais tarde detalhado e acordado com o PSD. Os mercados parecem melhorar ligeiramente, mas por pouco tempo. Estamos em meados de Maio.

E em pleno Verão as coisas começam mais uma vez a piorar: a despesa pública não parece estar controlada; os bancos, em consequência da baixa do rating nacional, têm dificuldades de financiamento; o crédito para as empresas escasseia e é caro; a dívida pública emitida tem custos elevadíssimos; os spreads batem recordes. O Governo passa, mais uma vez, para a clandestinidade. Num magnífico artigo, José Manuel Fernandes descreveu como o primeiro-ministro apareceu todos os dias nas notícias para inaugurar o Liceu Pedro Nunes ou falar da banda larga, mas manteve um silêncio comprometedor sobre o descalabro que nos batia e bate à porta.

O mundo deixava de acreditar em nós e no nosso Governo, voltava o espectro do FMI com o silêncio absoluto das autoridades sobre aspectos orçamentais. O PSD recusa partilhar responsabilidades ou colaborar com o Governo (ou vice-versa). A possibilidade de uma crise político-governamental, a adicionar à outra, parecia clara. E não foi por falta de alertas, durante todo este período de mais de dois anos houve muitas mensagens públicas de desespero: reavaliar as grandes obras públicas; actuar quanto antes; quanto mais tarde, maiores custos terá. Esse momento tardou, mas chegou.

Chegou ontem e brutalmente, como todos sabemos, o chamado PEC-3. Haveria alternativas? Alternativas havia há dois anos, há um ano, há seis meses, mas cada vez mais duras. O tempo passava e a gangrena alastrava. Espanha, de facto España es diferente, fez o trabalho atempadamente e os mercados deixaram de a apoquentar: subiu muito menos os impostos, os cortes na despesa foram menos dolorosos e os resultados são já visíveis este ano. (...)

O problema é que com três PEC"s num ano, sempre anunciados como sendo o último, o definitivo, o que tudo resolveria, fica em todos a dúvida: será? É que, penso, este resolve a questão para 2011 e tapa o buraco de 2010 com o fundo de pensões da PT (espero que o dito fundo seja transferido devidamente capitalizado, veremos). Mas para 2012 a situação poderá voltar a colocar-se, em particular se o crescimento for muito abalado com mais este PEC-3. E pouco depois aparecem as facturas das PPP"s, concessões, etc. Infelizmente o sarilho orçamental veio para ficar. Os culpados são fáceis de reconhecer: quem governou o país, digamos, desde 2001, com graus de responsabilidade crescentes até ao presente. O ponto de não retorno foi em Abril com a queda do rating, pelo menos para muitos anos. Nessa altura confessava que daqui para a frente só nos restava rezar. Um jornal alemão fez deste meu desabafo primeira página: vã glória. O leite estava definitivamente derramado e voltar a pô-lo no copo não é, nem será, tarefa fácil.(...)"


"Quem recentemente acertou na mouche ao falar sobre a crise financeira e económica que o país atravessa foi Ernâni Lopes, o ex-ministro das Finanças e do Plano do Governo do Bloco Central, dirigido por Mário Soares, que, em 1983, recebeu o FMI: "Não tem a ver com taxa de juro, oferta de moeda nem finanças públicas. Tem a ver com qualquer coisa mais importante. Os problemas resolvem-se com estudo e trabalho e não com facilitismo e aldrabice". (...)

Poderia ser de outro modo? Dificilmente poderia. Uma sociedade não pode ser melhor do que a escola que a molda. Facilitismo, o termo que tão bem se adequa à política em geral, é também o certo para designar a política escolar, também ela de Bloco Central. Mostra-o, por exemplo, o caso do aluno que entrou na Universidade, com 20 valores, pela porta do cavalo das Novas Oportunidades. E aldrabice é a palavra justa para descrever uma situação em que se passam diplomas a certificar sabedoria e competências a quem é manifestamente ignorante e incapaz. Uma aldrabice pegada, como cada vez é mais claro.(...)"